Como os novos materiais e a compreensão dos conceitos biomecânicos contribuíram para a evolução dos dispositivos ortodônticos.

Publicado na revista Ortodontia – edição v50 n3 – Matéria de capa

Por João de Andrade Neto

Protagonistas da movimentação dentária na Ortodontia atual, fios ortodônticos e braquetes acompanham a evolução secular da especialidade. Desde 1728, quando o francês Pierre Fauchard relatou o primeiro método de movimentação dentária através de uma tira de metal perfurada, as mudanças alcançaram a concepção dos dispositivos e os materiais utilizados. O entendimento correto da biomecânica, aliado às novas descobertas tecnológicas, revolucionou os tratamentos realizados com aparelhos ortodônticos.

Fauchard inventou um aparelho que chamou de “bandeou”, que utilizava uma tira em forma de ferradura, onde os dentes mal posicionados eram presos por meio de fibras e, assim, se deslocavam. Depois, ao longo do século 18, diversos autores desenvolveram técnicas de formas isoladas através de experiências clínicas, com a utilização de aparelhos de borracha, de prata e de metais, como bronze, e até madeira. “Até aquele momento, cada um enxergava as más-oclusões e tratava de acordo com suas perspectivas, conhecimentos e experiências clínicas. Era como se fossem formações e pontos de vistas diferentes, mas com soluções”, conta o mestre em Ortodontia Marlos Loiola.

A errática linha evolutiva da Ortodontia só passou a contar com um eixo consistente a partir de 1899, quando Edward H. Angle apresentou sua famosa classificação das más-oclusões. Angle ficou marcado na história da especialidade por contribuir em diversos aspectos da compreensão da biomecânica, assim como pelos aparelhos que desenvolveu.

O primeiro dispositivo importante foi o arco em E, descrito em 1890. O aparelho era simples e proporcionava bom alinhamento dos dentes pelo uso de bandas nos molares, com tubos vestibulares rosqueados e arco de expansão, também rosqueado, para conexão com os tubos. Isso aumentava o perímetro do arco e, assim, era possível obter espaço e posicionar os dentes.

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Como o arco em E não possibilitava a correção das relações axiais dos dentes, Angle percebeu que era necessárioexercer a movimentação do corpo do dente, a fim de produzir resultados mais estáveis. Assim nasceu, em 1910, o aparelho em pino e tubo. Este foi o primeiro dispositivo a utilizar bandas e acessórios de ouro ou platina na maioria dos dentes.

Pinos e tubos ficavam paralelos ao longo do eixo dos dentes para que a força fosse mais bem absorvida pelas raízes. A cada visita do paciente era necessário modificar as posições dos pinos para manter o aparelho ativado.

“Angle fabricava todo o material manualmente, braquete a braquete, no torno mecânico. Ele mesmo confeccionava, juntamente com seus alunos, disponibilizava e distribuía para a comunidade ortodôntica da época. Inclusive no seu livro, Angle descrevia a técnica e a utilização dos diversos materiais.”
Marlos Loiola

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Angle imaginava que este era o primeiro mecanismo que controlava e distribuía as forças de maneira fisiológica, realizando movimentos dentários que respeitassem os tecidos envolvidos. Mas, ainda não era possível obter o controle das rotações. Desta forma, em 1916, Angle desenvolveu o aparelho de arco de cinta, que tinha um delicado bloco de metal soldado às bandas. O dispositivo foi denominado “braquete” pelo autor. Também conhecido como “ribbon arch”, o aparelho conseguiu individualizar acessório por acessório, além de apresentar encaixes verticais no sentido oclusogengival. Nele, arcos retangulares eram colocados passivamente e por meio de dobras. Desta forma, os arcos com retificação assumiam a forma ideal e alinhavam os dentes. A partir daí, as forças passaram a ser transmitidas aos dentes por intermédio dos braquetes.

Ao longo desse período de desenvolvimento, os metais utilizados também passaram por uma evolução. Ele utilizava ligas de níquel-prata para confeccionar acessórios ortodônticos, o que dava um volume maior aos dispositivos. Depois, fez a substituição por ligas de cobre, níquel e zinco sem prata. Até que, posteriormente, passou a escolher as ligas de ouro.

No final de sua carreira, em 1928, Angle apresentou o aparelho Edgewise (arco de canto), certamente uma de suas mais importantes contribuições para a Ortodontia. O aparelho também fazia uso de arcos retangulares presos às canaletas por meio de ligaduras metálicas, de modo que permitia a movimentação do elemento dentário em todas as direções. Os primeiros braquetes já eram confeccionados em ouro maleável, com fácil deformação. O Edgewise permitia a execução da movimentação dos dentes em todas as direções.

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“Angle foi importantíssimo em vários sentidos. Mas, eu acredito que Tweed foi a pessoa que mais contribuiu com a ciência ortodôntica contemporânea. Ele deu credibilidade ao sistema Edgewise e à prática da especialidade como um todo, além de introduzir seu sistema de diagnósticos.”
Hugo Trevisi

Charles Tweed, um dos discípulos de Angle, assumiu a responsabilidade de dar continuidade ao legado do mestre – essa missão incluía testar e difundir o Edgewise. Tweed estabeleceu o primeiro consultório especializado no aparelho, em Tucson, Arizona, e tornou-se oficialmente o primeiro especialista em Ortodontia reconhecido. Com intensa procura e filas que duravam meses de espera, aquela época ficou conhecida como “A era dourada da Ortodontia”.

Ainda que Tweed tenha divergido da filosofia não extracionista proposta por Angle, ele cumpriu sua promessa de difundir a Ortodontia e o conceito do aparelho Edgewise, que continuou sendo aprimorado nos anos seguintes.

Vale ressaltar que, até o início de 1930, as ligas de ouro 14 a 18 quilates eram as mais usadas na fabricação de acessórios ortodônticos, além de fios, bandas, ganchos e ligaduras. Resistentes à corrosão, as ligas de ouro eram tratadas termicamente e variavam sua rigidez em cerca de 30%.

Em 1931, porém, Norris Taylor e George Paffenbarger introduziram o aço como alternativa ao ouro, por conta da maior resiliência e menor possibilidade de rompimento sob tensão. Paralelamente a isso, a Primeira Guerra Mundial – e os anos que a sucederam – estimulou o desenvolvimento de diferentes tipos de aços inoxidáveis. Desde então, ouro e aço disputaram espaço na Ortodontia. Dois anos depois, Archie Brusse apresentou o primeiro sistema de aço inoxidável completo voltado para a clínica, na cidade de Oklahoma, nos EUA.

Em 1935, Jacob Stolzenberg criou o primeiro modelo de braquete Edgewise que não necessitava de ligaduras. Tratava-se do aparelho “Russell Lock”, um dispositivo com parafuso e uma folga que poderia ser ajustada a partir de sua fricção mínima continuamente até gerar o atrito. Este foi considerado o primeiro braquete autoligado da história.

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Quase duas décadas depois, em 1952, Brainerd F. Swain idealizou o primeiro braquete geminado, com aletas duplas em uma base simples. Ele foi rapidamente incorporado ao aparelho Edgewise. Assim, braquetes com larguras variadas passaram a ser usados nos diferentes grupos de dentes.

Na década de 1960, as ligas de cobalto-cromo foram introduzidas na Ortodontia, depois do sucesso na fabricação de molas para relógios. Ao mesmo tempo, o ouro foi paulatinamente sendo abandonado na Odontologia, consolidando o espaço do aço inoxidável. No mesmo período, com as primeiras técnicas adesivas, os braquetes bandados deram lugar aos braquetes menores e colados. A Ortodontia estética dava, assim, os seus primeiros passos.

Em 1963, surgem as ligas de níquel-titânio, desenvolvidas pelo pesquisador Willian Buehler. Foi observado, pela primeira vez, o chamado “efeito memória de forma”, ainda sem aplicação na Ortodontia. Em 1972, a Unitek produziu essa liga para uso clínico, sob o nome comercial de nitinol, ainda sem efeito memória de forma ou superelasticidade. Na mesma década, também apareceram braquetes plásticos moldados por injeção, a partir de um polímero de policarbonato. Em pouco tempo, foram observadas mudanças físicas e mecânicas associadas a manchas, odores e deformações. Os braquetes autoligados ressurgiram em meados dos anos 1970, com corpo de aço inoxidável e mecanismo de encaixe mola-clipe. Como não precisava de ligadura convencional, conferiam fricção mais reduzida.

O domínio do Edgewise só voltou a ser impactado com a chegada do aparelho Straight-Wire, desenvolvido por Lawrence F. Andrews em 1970. Analisando possíveis melhorias em relação ao conceito do Edgewise, Andrews incorporou as “dobras” necessárias para movimentar os dentes nas direções desejadas no desenho dos braquetes, de forma mais previsível e em menos tempo. Na tentativa de aperfeiçoar ainda mais o aparelho, foram desenvolvidas séries de braquetes Straight-Wire para casos com extração, seguindo os conceitos de angulação, torque e antirrotação, que buscavam anular os efeitos colaterais dos movimentos de translação. Andrews preconizou, ainda, três especificações de torque diferentes para os incisivos superiores e inferiores. O aparelho passou, então, a conter várias prescrições.

Além de Andrews, Ronald H. Roth também teve uma importante contribuição na evolução do Straight-Wire. Enquanto Andrews recomendava várias especificações de braquetes, Roth propunha um único sistema de aparelho, que consistia em uma quantidade mínima de braquetes. Assim, segundo Roth, seria possível tratar casos com e sem extrações. Essa foi uma grande reformulação na prescrição original do aparelho Straight-Wire. O sistema ficou conhecido como a segunda geração de braquetes pré-ajustados.

Edgewise e Straight-Wire foram as grandes novidades em aparelhos ortodônticos do último século. Depois, muitos profissionais buscaram alternativas para melhorias e adaptações aos sistemas já utilizados. Em 1976, Robert Murray Ricketts buscou avançar na técnica Edgewise, com a intenção de deixá-la mais flexível e versátil. Com isso, idealizou a Técnica Bioprogressiva, após estudos realizados em crânios com oclusão normal associados à experiência clínica. Ricketts baseou sua filosofia em arcos segmentados de Elgiloy, que permitiam um tratamento setorizado na porção anterior e posterior do arco dentário, buscando, assim, maior controle vertical e horizontal da biomecânica.

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“A partir do Straight-Wire, na década de 1970, a Ortodontia entrou na era dos pré-ajustados. Embora o modelo proposto por Andrews tenha passado por uma simplificação importante, praticamente todos os sistemas seguintes foram elaborados a partir desse conceito. O próprio MBT, que apresentamos em 1997, faz parte dessa geração, quando nós introduzimos a ideia da biomecânica de deslize. De certa forma, o MBT foi a última novidade do século 20.”
Hugo Trevisi

Com diversas técnicas e conceitos desenvolvidos, Wick Alexander buscou simplificar e trouxe a técnica Vari Simplex, que consistia na utilização de braquetes pré-ajustados de aletas duplas e simples, utilizados concomitantemente para que os dentes alcançassem suas posições ideais. O aumento da distância interbraquetes permitia a utilização de fios retangulares multifilamentados desde o início do tratamento.

Já no final da década de 1980, Ricketts contou com o auxílio de Carl Gugino e apresentou uma evolução da técnica, com o desenvolvimento de três conjuntos de braquetes: um para o indivíduo braquifacial, outro para o mesofacial e outro para o dolicofacial. As novas prescrições para esses tratamentos foram denominadas: proversão, neutroversão e retroversão. Atualmente, o dispositivo mais utilizado da Terapia Bioprogressiva é o arco-base (ou arco-utilidade), confeccionado com o fio Elgiloy Azul .016” x .016” e usado desde o início do tratamento. O fio, de secção quadrada, permite a realização de ajustes intraorais, com o emprego de forças leves e contínuas, e controle de torque. Com o arco, as discrepâncias verticais são tratadas antes das horizontais.

Conhecido pelo desenvolvimento da técnica do arco segmentado, Charles Burstone foi entusiasta do estudo da biomecânica na década de 1980. O norte-americano buscou entender a física na Ortodontia, descrever as geometrias e os efeitos desejados e indesejados da mecânica, de uma forma mais científica.

Os anos 1980 foram ricos no desenvolvimento de materiais. O titânio de alta temperatura foi difundido e ganhou ampla aceitação clínica, já que associava a capacidade de aceitar dobras e a baixa rigidez. Apareceram os braquetes estéticos de um único cristal de safira, a partir da alumina policristalina, que dificulta a mecânica de deslizamento e a descolagem dos acessórios. Na Ásia, a GAC trabalhou para introduzir, em 1986, o “Japanese NiTi”, um fio ortodôntico com propriedades similares aos nitinol. O fio teve suas propriedades melhoradas e possuía maior recuperação elástica e menor rigidez que o de níquel-titânio convencional.

Já no início de 1990, foi comercializado o primeiro fio de pseudocomposto, feito a partir de fibras ópticas. Apesar de estético, era considerado frágil. O fato tornou o material inviável financeiramente e comercialmente. Anos depois, os fios de níquel-titânio com adição de cobre (CuNiTi) surgiram no mercado, apresentando propriedades termoativas mais definidas do que os superelásticos.

O sistema MBT foi oficialmente introduzido em 1997 por Richard McLaughlin, John Bennett e o brasileiro Hugo Trevisi. Com filosofia própria e uma prescrição com maior controle sagital (torque) posterior de pré-molares e molares, os autores redesenharam o sistema de braquetes, com uma revisão na pesquisa de Andrews, levando em consideração os resultados de pesquisas japonesas. Era a terceira geração do sistema de braquetes pré-ajustados, que aproveitou o que havia de melhor nos sistemas originais e introduziu uma gama de aprimoramentos e alterações nas especificações para solucionar os problemas clínicos, com base científica e anos de experiência clínica.

Além disso, o sistema de aparelho ortodôntico MBT Versátil foi projetado para trabalhar com a biomecânica de deslize, onde são usadas forças leves e contínuas. A forma retangular dos braquetes foi substituída pela forma romboide, com torque na base. Essa mudança reduziu o tamanho de cada braquete e coordenou as linhas perspectivas em dois planos, favorecendo o posicionamento dos braquetes.

“A evolução dos braquetes e dos fios ortodônticos proporcionou sistemas mais estéticos e confortáveis para os pacientes. Com relação aos autoligados, foi observada uma diminuição no tempo de atendimento de cadeira para o ortodontista. Porém, o que se discute ainda é se efetivamente proporcionam tratamentos mais rápidos. Até o momento, a literatura mostra que não existe diferença em comparação aos sistemas tradicionais e clássicos.”
Marlos Loiola

Desde então, as novidades mais notáveis são de materiais, em especial para os braquetes. A Ortodontia estética ganha destaque e, com ela, os braquetes de porcelana e os cerâmicos, também conhecidos como safira. Eles têm forte apelo junto aos pacientes adultos, que passaram a representar uma parcela relevante nos atendimentos, por conta da estética.

A partir da virada do século 21, a Ortodontia redescobriu os aparelhos autoligados, dando início a uma forte onda de popularização do conceito. A ideia de dispensar as ligaduras elásticas em busca da redução de fricção criou a expectativa de que os tratamentos também pudessem ser acelerados, embora esta possibilidade ainda seja tema de debates. A novidade foi a introdução das portas ativas e passivas.

A praticidade do sistema autoligado favoreceu o ortodontista, tornando as consultas de manutenção muito mais rápidas e aumentando a sua produtividade. Embalada nessa popularização, a indústria do setor abraçou os autoligados com vigor e muitas marcas passaram a desenvolver variações e personalizações a partir do conceito.

À primeira vista, a evolução dos fios e braquetes se confunde com a trajetória da própria Ortodontia. No entanto, as últimas décadas ofereceram outros dispositivos que potencializaram o arsenal do ortodontista, como os alinhadores estéticos, os mini-implantes, as miniplacas etc., ampliando as possibilidades de tratamento. Somam-se a esse quadro as técnicas cirúrgicas de aceleração do tratamento e as tecnologias digitais, cada vez mais presentes. Diante disso, a evolução da Ortodontia abre perspectivas ainda mais animadoras para o futuro. Qual será o próximo advento a nos surpreender?

 

Publicado originalmente em http://www.ortociencia.com.br/Materia/Index/133161

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